terça-feira, 9 de setembro de 2008

A actividade na sombra

O texto de José Vítor Malheiros no Público de hoje é obrigatório para todos e especialmente aconselhado a uma certa direita e outra certa esquerda. E, já agora, seria aconselhado ao meu chefe. Aqui fica reproduzido na íntegra.

«O que andam a fazer estas pessoas todas?

Se uma mulher vai ao pinhal e regressa com lenha, sabemos o que fez. Mas aonde foi Ferreira Leite, o que fez, o que traz?"Já viu isto? A meio da tarde, um dia de trabalho e anda tudo na rua a passear. O que é que esta gente anda a fazer? Não têm empregos?" O comentário é um daqueles que os clientes dos táxis ouvem com frequência. Os taxistas, como é natural, gostariam que toda a cidade fosse um enorme corredor bus. Mas o que é mais estranho é que eles não percebem mesmo o que anda aquela gente toda (nós) a fazer na rua. "A maior parte destas pessoas também deve andar a trabalhar...", avanço eu, prudentemente. "A trabalhar? A fazer o quê?..." "A visitar clientes, em reuniões, ver uma obra, dar aulas, comprar materiais... Outros vão agora trabalhar ou regressam a casa, ou vêm do almoço, trabalham por turnos... " "Todos? Um ou outro não digo que não, mas a maioria anda a passear..."
É difícil imaginar o trabalho dos outros. E o modo de produção industrial e pós-industrial e a desmaterialização e complexidade da cidade moderna tornaram quase impossível uma leitura que noutras eras era evidente.
Recordo-me de uns dias que passei há anos numa aldeia da Beira onde a clareza dessa leitura, o sentido evidente de cada gesto de cada um dos habitantes da aldeia me marcou de uma forma profunda. Uma mulher ia até ao pinhal depois do almoço e regressava passada uma hora com um braçado de lenha. Um homem levava uma vaca pela mão de manhã cedo e regressava a casa sem a vaca, para sair de casa ao fim do dia com um cesto vazio e regressar com a vaca e o cesto cheio de couves. Uma mulher e a filha sentam-se na paragem da camioneta para a vila próxima. Não levam bagagem, voltarão hoje, o mais tardar na carreira das 18h40. À noite, a cantilena de um bêbado de regresso a casa indica a hora de fecho da venda da aldeia.
O trajecto de cada um, aquilo que levava, a maneira como estava vestido, como caminhava, a hora do dia tornavam evidente o sentido dos seus gestos e inscrevia-os numa lógica compreensível e cíclica, cuja leitura global a pequenez do meio permitia. A cada ida correspondia uma vinda, a cada ferramenta uma acção, a cada trajecto um destino, a cada som uma origem. Havia espaço para a conjectura, mas dentro de um quadro cuja narrativa era conhecida e cuja racionalidade era evidente. O mundo tinha sentido e esse sentido era palpável.
O anonimato da cidade é também o desconhecimento dos gestos dos outros, do que os motiva, do que os faz deslocar. E não se pense que isto é mera função da falta de instrução. Muitos gestores não fazem a mínima ideia do que fazem (e como o fazem) os trabalhadores da sua empresa. O trabalho deles é tão simples e tão fácil... Por que razão precisa um jornalista de um dia ou uma semana para escrever um texto que um dactilógrafo pode bater em meia hora?
Os políticos, para uma larga camada da população, oferecem o melhor exemplo desta dificuldade de leitura. O que fazem os deputados? Fazem uma intervenção no Parlamento uma vez por mês e no resto do tempo o quê? E os políticos que não são deputados fazem alguma coisa? O Governo governa, bem ou mal, mas a oposição o que faz?
A democracia deve ser também o conhecimento destas tarefas, do ritmo e dos objectivos do trabalho políti-
co, porque ele deve ser transparente e possuir uma racionalidade evidente, cujos resultados se inscrevam com sentido na nossa vida. A inexistência desse sentido é um sinal de que a democracia está colada com cuspo. Mas é também um reflexo de uma incompetência dos políticos. Dar visibilidade e racionalidade ao seu trabalho é uma das tarefas de qualquer político. É por isso que a afasia do PSD, o silêncio de Manuela Ferreira Leite ou a banalidade do seu discurso quando finalmente fala é tão lesivo da democracia como as práticas de que acusa com razão o Governo.»

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