sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Quem poderia julgar?


A K. é sérvia. Está para fazer 30 anos, o que significa que viveu através da guerra civil e dos bombardeamentos da NATO. Falar com ela sobre o mundo e sobre política internacional é ouvir um desfiar de um novelo de cinismo conquistado ao ritmo das bombas. Falar sobre política interna é ouvir as histórias, documentadas ou rumoradas sobre corrupção endémica, abusos de poder e uso de violência. Segundo ela, não há um único político no mundo que não seja corrupto ou vítima de corruptos. Cinismo é, portanto, uma forma de estar.

Não é de estranhar. Apesar de ter vivido em Belgrado toda a vida, tendo escapado ao pior da guerra civil, viu amigos, colegas e vizinhos a morrer nesse período. Ela própria ficou mais que uma vez a poucos minutos de ser um dano colateral na campanha de bombardeamento da NATO. Vendo a história do país, também não se estranha. O avô movia-se no mercado negro durante a II Guerra Mundial como um gato vadio num beco escuro. A mãe é uma enguia na burocracia sérvia, usando amizade, simpatia ou simplesmente carisma para ultrapassar os obstáculos oficiais.

Talvez por isso seja curioso que ela fale no exemplo do pai, um respeitado engenheiro num prestigiado instituto nacional. Num país onde tanta gente usou as suas posições na sociedade para se auto-promover e beneficiar a sua família e amigos, o pai da K. manteve-se sempre honesto e recto, incapaz de prejudicar outros só para que a sua família vivesse melhor. Não que vivessem mal, note-se. Apenas, mediante tais possibilidades que o pai da K. tinha devido à sua posição, poderiam viver muito melhor. Como a elite, talvez.

Mas não o fez. A integridade dele foi sempre inabalável ao longo destes anos. E daí decorre a pergunta: num país como este, em que tanta gente foi prejudicada sem o merecer, onde tanta gente beneficiou de privilégios sem esforço, onde pequenas acções menos legais ou morais podem melhorar imenso a vida, quem faria o mesmo? A pergunta não surge para o alcandorar a um pedestal de autoridade moral. Antes serve para questionar. Porque eu não conseguiria criticar quem fizesse uma ou outra coisa. Ou melhor, seria capaz de criticar de igual forma ambas as posições. Mas isto seria da minha posição exterior. Eu não vivi aqueles tempos. Eu não conheço as circuntâncias. Eu não posso julgar.

Quem diria o mesmo?

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